Direito de morar bem: quem tem acesso à moradia de qualidade?

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Cooperativas de Vivienda Castalia yCuareim, anos 2016 – 4ª geração. . Image © Anaís Jorcin

A arquitetura, entendida como qualidade espacial e de projeto, é muitas vezes vinculada diretamente à riqueza, quase um artigo de luxo destinado a ser aproveitado por poucos em nossa sociedade, sobretudo quando nos referimos a projetos habitacionais em países com grande desigualdade social. Apesar da amplitude que a análise de projetos habitacionais pode ter, este texto pretende refletir sobre a produção de habitação coletiva atual, que tem na qualidade do ambiente construído um resultado derivado da compreensão da moradia como mercadoria e não como direito. 

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Em 1948, a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos, e depois em 1966, a partir do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, a ONU determinou que moradia é um direito humano universal, aceito e aplicável em todas as partes do mundo como um dos direitos fundamentais para a vida das pessoas. Assim, é responsabilidade constitucional do Estado conceder habitação à população de seu país. Ao mesmo tempo, a moradia é também uma questão social que se efetiva por meio da produção, envolvendo aspectos como mercado, cadeia produtiva da construção civil e a organização social vigente. Dessa forma, se por um lado a habitação é um direito, por outro, a lógica capitalista a transforma em mercadoria, ditando todos os aspectos de sua produção a partir da obtenção do lucro, esvaindo o direito de habitar em seu desenrolar.

A qualidade espacial dos projetos habitacionais responde a essa mesma dualidade. Se olharmos sob a ótica da habitação enquanto direito, podemos listar uma série de parâmetros para definir um projeto habitacional de qualidade, como, por exemplo, estar localizado em uma região com infraestrutura básica (alimentação de qualidade, saúde, educação, lazer e transporte); apresentar desenho cuidadoso e generosos com os espaços coletivos e privativos; utilizar materiais e soluções técnicas que levam em conta a qualidade para além da economia de recursos; e também todos os aspectos técnicos relativos à iluminação e ventilação natural e conforto acústico e térmico. Nessa perspectiva, a moradia deve atender à população, além de ser viável e funcional tecnicamente.

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Habitação coletiva Castelli 3902 em Buenos Aires. Image © Ricardo De Francesco

Por outro lado, ao pensarmos na lógica da habitação, e da arquitetura, enquanto produto outros interesses interceptam o projeto, o que impacta diretamente no resultado construído. O mercado imobiliário investe em novas construções considerando o retorno a partir da especulação e portanto esse investimento deve ser o mínimo possível que garanta o maior retorno financeiro. Dessa forma, desde a localização do terreno, o qual quanto mais nobre, melhor, passando pelo desenho, que procura alojar o maior número de apartamentos possível dentro da planta, até a técnica construtiva, que deve ser ao mesmo tempo convencional, de fácil reprodução e veloz, tudo deve visar otimizar o processo de produção para ter um produto valorizado e rentável. 

Dentro dessa lógica, a qualidade espacial pode ser comprometida pelo mercado, principalmente quando se considera que o mercado se organiza a partir de padrões sociais. Atualmente, nos grandes centros urbanos, projetos habitacionais com as qualidades citadas anteriormente são normalmente produzidos e vendidos para a minoria mais rica da população. Para a massa intermediária da classe média, o mercado adequa algumas características para produzir habitações mais acessíveis, que ainda assim precisam ser financiadas. Porém, a maior parte da população não têm recursos para comprar sua casa, e, portanto, compõem as estatísticas de déficit habitacional, dependendo integralmente de políticas públicas estatais concederem seu direito de morar. 

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Edifício Residencial Leopoldo 1201 / aflalo/gasperini arquitetos . Image © Maíra Acayaba

O Estado concentra, histórica e contextualmente, diferentes maneiras de lidar com a produção habitacional, sendo ele o executor ou não dessa produção. Mais recentemente países como o Brasil e o México desenvolveram, a partir do alto déficit habitacional e de uma busca por produzir habitação popular em larga escala, programas habitacionais similares que transformaram a lógica da construção civil em seu território. A partir de terrenos longínquos, desintegrados do tecido urbano consolidado e carentes de infraestrutura básica, formaram-se bairros inteiros compostos por pequenos lotes ocupados por casas térreas idênticas, produzidas em série, rapidamente e sem qualquer tipo de cuidado paisagístico ou qualitativo de espaço. 

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Conjunto habitacional do Minha Casa Minha Vida. Image Cortesia de minhacasaminhavida.com.br
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Conjunto Habitacional no México. Image © Jorge Taboada

Esses bairros são a resposta que o mercado deu ao governo quando foi escalado a produzir habitação focada na parcela menos abastada da sociedade a partir de subsídios estatais, porém existem outras experiências que resistem e buscam o contrário. Os movimentos organizados fortalecidos no período de redemocratização da américa latina como por exemplo a FUCVAN do Uruguai, MOI da Argentina ou ainda o MST Leste 1 no Brasil propunham, junto de políticas públicas de seus governos locais, a produção de moradias por autogestão, tirando fora a figura da construtora e revertendo a lógica do lucro para qualidade habitacional. Os projetos construídos no contexto da autogestão e dos mutirões desde então são símbolos de resistência de grupos sociais que lutam contra a produção hegemônica para garantir àqueles que mais precisam acesso a conjuntos habitacionais de qualidade, além de toda autonomia e formação cidadã política. 

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Habitação coletiva Castelli 3902 em Buenos Aires. Image © Miguel Caamaño

A produção de habitação atual nos mostra que o foco do mercado imobiliário não está na concessão do direito de morar, nem na obtenção de qualidade espacial, mas sim no lucro a partir da venda da mercadoria. Essa lógica tem transformado os canteiros de obra, que se tornaram cada vez mais exploratórios e alienados, com o objetivo de serem mais velozes e eficientes, o que impacta no resultado espacial, no produto: a casa. Dentro dessa lógica, o mercado hoje vende apartamentos menores, com materiais de menor qualidade, por preços altos, de maneira que só os muito ricos têm acesso a boas habitações. Apesar dessa lógica de canteiro também dificultar as possibilidades técnicas e políticas dos grupos sociais que lutam e exigem seus direitos, experiências em toda américa latina ressaltam como apenas uma inversão no olhar para a habitação pode de fato democratizar projetos habitacionais: exigindo que seja concedido o direito de moradia digna de qualidade independente da prática mercadológica.

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Mutirão Paulo Freire / Usina CTAH. Image Cortesia de USINA CTAH

Referência:
GUERREIRO, Isadora de Andrade. Habitação a Contrapelo: As estratégias de produção do urbano dos movimentos populares durante o Estado Democrático Popular, 2018. Acesse aqui.

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Sobre este autor
Cita: Giovana Martino. "Direito de morar bem: quem tem acesso à moradia de qualidade?" 12 Jul 2022. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/983983/direito-de-morar-bem-quem-tem-acesso-amoradia-de-qualidade> ISSN 0719-8906

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